“Um homem desarmado, é um homem sem cunhão”. Honra, armas e glórias no imaginário nordestino.
Historiograficamente e sociologicamente, muito se tem discutido sobre política[i], sociedade, ideologia[ii] ou mesmo trabalho[iii] na formação do Brasil enquanto nação, entretanto, afora mitos fundadores[iv], heróis ou mesmo “forças ocultas” que interferem na evolução política brasileira, não podemos esquecer que o Brasil, país com extensão territorial continental, divido em cinco regiões, cada uma com sua cultura, com suas aspirações e desejos, não pode ser entendido a partir do viés analítico histórico oriundo principalmente dos grandes centros, representados pelas escolas cariocas ou paulistas. Poderia dizer que: “o Brasil é muito mais”.
O estereótipo criado do nordestino, de ser um cabra da peste, homem macho, que não foge à briga e nem às armas e que enfrenta as intempéries naturais, difundido principalmente na literatura regionalista[v], nos dá uma dimensão do vácuo histórico que por muito tempo perdurou nas academias e que perpassou à mentalidade brasileira. Cidade e sertão nordestino, principalmente no fim do século XIX e início do XX[vi], é mostrado sem diferenciações, discutidos a partir dos mesmo parâmetros, ou seja, lugares inóspitos, selvagens e bárbaros, onde a lei que imperava, seria a lei do bacamarte.
Nordeste este que não reconhecia a força do Estado, mas o furor das armas dos coronéis, do derramamento de sangue, das lutas entre famílias e principalmente, do banditismo social[vii].
Na ausência do Estado, a formação de grandes clãs e na abundância de mão de obra e pouco serviço, além da exploração do camponês nas terras dos coronéis do sertão, o cenário nordestino se mostrara propicio para o surgimento de cangaceiros, como também de beatos ou clérigos, que mantinham grande prestígio no controle das ações, desejos e no futuro das pessoas.
Estes “representantes de Deus na terra” davam, ou prometiam dar aos camponeses famintos, aquilo que não tinham na terra, que era a felicidade, a partir da peregrinação e posteriormente da salvação. Entre as armas e a reza, viviam os camponeses nordestinos no inicio do século XX. Antonio Conselheiro em suas ações bem exemplifica essa questão, quando:
A sua entrada nos
povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens,
cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as
ocupações normais. Ermava-se as oficinas e as culturas. A população convergia
para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante
alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde
monopolizava o mando, fazia-se autoridade única[i].
Os peregrinos seguidores de Conselheiro, nas suas vestimentas, nos seus usos habituais e na forma de viver, na sua grande maioria, confundiam-se com os jagunços dos coronéis do sertão, embora seus rifles do papo amarelo fossem trocados por foices e enxadas.
Seguindo o beato, buscavam a salvação, que acreditavam estar condicionadas às leis religiosas propagadas por Conselheiro. Beatos, peregrinos, coronéis e jagunços, principalmente estas classes, povoavam os sertões nordestinos.
No cenário nacional, “outro inimigo” se mostrava perigoso e próximo, atravessando fronteiras e divisas, chegando inclusive aos sertões nordestinos. Não que os coronéis sertanejos estivessem conscientes e conhecedores da ideologia de mudanças que se avizinhava, mas um aporte coronelístico estava e esta, ou seja, a Igreja Católica, não silenciava em suas homilias, como vemos nas pregações de Padre Cícero representadas posteriormente em cordéis:
VERDADEIRA
PROFECIA DO PADRE CÍCERO ROMÃO
Bela tarde
de domingo
Dia da
Ressurreição
Em
Juazeiro, Ceará
O padre
Cícero Romão
No ano
atrás passou
Trinta e
três que profetizou
Do mundo a
consumação (...)
Qualquer
coisa é ditadura
E a
monarquia futura
Não fará
ninguém feliz
O
bolchevismo, meus filhos
Ou o
comunismo falado
É o regime
soviético
Por Jesus
profetizado
Com a sua
nova doutrina
É a
besta-fera assassina
É o
anticristo chamado
Este partido, meus filhos
A muitos iludirão
Farão milhões de adeptos
No mundo se espalharão
Propagará com astúcia
Todo regime da Rússia
Em quase toda a nação (...)
Ai de vós! diabo de carne
Que zombam do próprio Deus
Ai daquele que profana
Com seus intentos ateus
Ai de todo miserável
De instinto variável
Com todos pecados seus! (...)[i]
A Revolução Russa (1917)[i], o comunismo e a possibilidade de organização e conscientização dos camponeses, tendo como pano de fundo a consciência de classe difundida pelos ideais marxistas[ii], chegara aos longínquos sertões e isso preocupava as elites. Embora os cangaceiros, posseiros ou peregrinos não tivessem essa conscientização, seus modos de ação confundiam-se com as práticas desempenhadas nos sertões nordestinos.
Gramsci já defendia que “a luta de classes se confunde com o banditismo, a chantagem, o incêndio premeditado de florestas, a mutilação do gado, o sequestro de mulheres e crianças, os ataques contra repartições municipais[iii]”, e isso se via em grande parte nas práticas nordestinas camponesas cangaceiriças.
O banditismo cangaceiriço nordestino, pregando ideais de justiça, de liberdade e visto por muitos como representação heroica, dada as formas de atuação diante das adversidades e lutas contra os coronéis, assumia como bandeira, além de outras, a defesa da moral sexual.
Passaram a ser lembrados tanto por suas ações de defesa dos mais pobres, como também pela crueldade com que agiam quando contrariados. Mas o que fazia com que pessoas boas, de famílias honestas adentrassem no cangaço?
Lembrando que as transformações sociais demoram a ser percebidas nos centros rurais, onde os camponeses, no Nordeste chamados de pequenos agricultores, eram menosprezados pela elite politica e econômica, sendo oprimidos e explorados em seus labores e que, viam nas armas e no banditismo, a possibilidade de liberdade, pois sendo presos à terra pelo trabalho, nela tiravam sua liberdade, pegando em armas, seguindo caatinga à dentro, invadindo cidades, desafiando coronéis e sendo reconhecidos com titulo hierárquico, chegando a capitão do cangaço.
A defesa da moral, a ausência do Estado e o anseio de justiça com as próprias mãos, além de outros fatores, modificou a forma de vida de muitos sertanejos. Da crendice popular, lembramos o seguinte fato:
Conta-se que nos sertões da Macambira cearense, uma família de pequena
propriedade teve seus domínios invadidos e tomados por um coronel, o que fez
com que o filho mais novo, de nome Francisco adentrasse ao bando de Lampião e
sumindo nas caatingas. Sua família, embora não aceitasse não pode nada fazer,
ficando em casa um casal de pais velhos e uma irmã adotiva, de nome Rosa.
Não demorou muito tempo e
Rosa aparecera grávida. Mesmo com toda pressão dos pais para dizer quem era o
“homem que tinha desonrado a família”, Rosa resistia, por ter medo das
consequências, devido ao pai da criança ser um homem casado. Quando o velho pai
disse que não tinha alternativa, a não ser comunicar ao Francisco do
acontecido, Rosa parece não ter dado muita importância e assim, o velho pai
mandou recado ao bando comunicando o fato.
Passado alguns dias,
sentado na varanda da pequena casa o velho pai, a senhora mãe e um compadre da
família, ao longe observaram o galopear desenfreado de um cavalo em direção à
casa, sendo o ocupante da animália um homem todo encouraçado, com chapéu e
bornal enfeitados, punhal de meio metro atravessado na cintura, rifle papo
amarelo calibre 44 nas costas e um parabelo no coldre ao lado do peito. Era
Francisco, apressado e desencontrado na fala, angustiado e resolvido a ter com
Rosa a confissão do nome daquele que a desonrara e desgraçara mais uma vez sua
família.
Pulou do cavalo quase
adentrando o alpendre, dada a velocidade que vinha, e já foi cumprimentando a
todos, sem encontrar os adjetivos e pronomes de tratamento corretos para as
frases, demonstrando inquietação e saudando
da seguinte forma:
- ADEUS MINHA MÃE, COMO É
QUE TÁ MEU PAI, A BENÇÃO COMPADRE BENEDITO ... CADÊ SÁ ROSA?
Antes que alguém dissesse
alguma coisa, lá da cozinha, uma voz chorosa e cantada ecoou:
- É do Lúcio Chiquim.....[i]
CONTINUA...
Antonio Iramar Miranda Barros
Ipu/CE, 04/mai/2017
____________________________________
[1] BOBBIO, Norberto. O Estado, formas de estado,
formas de governo. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1987. Ver: GRAMSCI, Antonio. Maquiavel:
A política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984
[1] CHAUI, Marilena.O
que é ideologia, São Paulo: Brasiliense, 2001
[1] PREVIDELLO, Adhemar, DUTRA, Ivan. Elementos de Economia. São
Paulo: Editora Jalovi, 2010
[1] GIRARDET, Raoul. Mitos e ideologias políticas. São Paulo:
Companhia das letras, 1987
[1] CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1985. QUEIROZ, Rachel de. O
Quinze.Rio de Janeiro. Ed. José Olympio, 2009. ROSA, Guimarães. Grande
sertão veredas São Paulo: 1984 entre outros
[1] A discussão sobre modernidade
poderia adentrar neste contexto, principalmente a partir da segunda década do
século XX, entretanto, não achamos interessante neste texto. Aos interessados:
VER: FARIAS FILHO. Antonio Vitorino. Cidade e modernidade, Ipu-CE: verso e reverso de uma cidade
nas primeiras décadas do século XX. Pernambuco: Universidade Federal de
Pernambuco, Tese de Doutorado, 2013
[1] HOBSBAWM, E. J. Bandidos. São Paulo: Paz e
Terra, 2010
[1] CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Brasiliense,
1985. p. 201
[1] CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Verdadeira profecia de Padre Cicero. Literatura
de cordel. S/d. Endereço: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=CordelFCRB&PagFis=51639&Pesq= Acesso em 02/05/2017
[1] TROTSKI,
Leon. Como Fizemos a Revolução .São
Paulo: Global, 1978
[1] MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. Manifesto
do Partido Comunista. Lisboa: Edições Avante, 1975
[1] PIGLIARU, Antonio. Il banditismo in Sardegna: La vendeta
barbaricina: Varese, 1975
[1] Conto popular
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