(Plantão Jurídico) A importância do boletim de ocorrência em relação a presunção de veracidade dos fatos


No direito processual penal, é vedado ao juiz ou à juíza a fundamentação da sentença com base, exclusivamente, nas provas produzidas em fase pré-processual, ou seja, durante as investigações. Assim, preceitua o caput do art. 155 do Código de Processo Penal:
  • "Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas."
Se, por exemplo, uma testemunha de grande importância para a elucidação dos fatos presta depoimento somente na delegacia, a pessoa julgadora não pode se utilizar de sua fala para fundamentar uma condenação. 

Isso apenas seria possível se tal testemunha "contasse" esses mesmos fatos diretamente para o juiz - e é neste caso que estaríamos diante da produção de uma prova, apta a fundamentar, em consonância com o restante do contexto probatório, uma sentença.

Tal introdução se faz necessária para que possamos entender alguns aspectos da prática penal. Ainda que os elementos fornecidos pelo inquérito policial não possam fundamentar, com exclusividade, uma condenação penal, sabemos que, na prática, são eles quem vão ditar o "tom" da ação penal - desde a denúncia até a sentença. 

É com base nos autos do inquérito policial que se oferece uma denúncia; esta, por sua vez, conterá os fatos narrados na investigação. E um ator fundamental na narrativa destes fatos é o boletim de ocorrência.

O boletim de ocorrência goza de presunção de veracidade, ou seja, pressupõe-se que os fatos nele descritos são verídicos, por se tratar de um procedimento administrativo.

Neste sentido, já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
  • "DIREITO PENAL. CONTRABANDO. CIGARROS. ARTIGO 334, § 1º, ALÍNEA 'B', DO CÓDIGO PENAL (COM A REDAÇÃO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.008/2014), EM COMBINAÇÃO COM O ARTIGO 3º DO DECRETO-LEI Nº 399/1968. PROVAS COLHIDAS DURANTE A FASE POLICIAL. BOLETIM DE OCORRÊNCIA. IRREPETIBILIDADE. PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE E DE LEGALIDADE. IRREPETIBILIDADE. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO. CONFIGURADOS. JUSTIÇA GRATUITA. CUSTAS PROCESSUAIS. PEDIDO DE ISENÇÃO. COMPETÊNCIA PARA APRECIAÇÃO. JUÍZO DA EXECUÇÃO. 1. Muitas provas colhidas durante a fase policial, como o auto de prisão em flagrante, o boletim de ocorrência, a apreensão de objetos ilícitos e os laudos periciais, não demandam, nos termos do artigo 155 do Código de Processo Penal, repetição em sede judicial, constituindo atos validamente praticados ao seu tempo, revestidos de valor probante, sendo o contraditório diferido para o momento em que trazidos a juízo, atendendo às garantias do devido processo legal. 2. Os procedimentos administrativos gozam de presunção de legitimidade e de veracidade, próprias dos atos administrativos, sendo considerados provas irrepetíveis, nos termos do artigo 155 do Código de Processo Penal. 3. Materialidade, autoria e dolo comprovados, a partir do contexto probatório, pela prática da conduta tipificada no artigo 334, § 1º, alínea 'b', do Código Penal (com a redação anterior à vigência da Lei nº 13.008/2014), em combinação com o artigo 3º do Decreto-Lei nº 399/1968. 4. O acusado, ainda que beneficiário de assistência judiciária gratuita, deve ser condenado nas custas processuais, nos termos do artigo 804 do Código de Processo Penal, ficando, contudo, seu pagamento sobrestado, enquanto perdurar seu estado de pobreza, pelo prazo de cinco anos, quando então a obrigação estará prescrita, conforme determina o artigo 12 da Lei nº 1.060/1950. Compete ao juiz da execução apreciar o pedido de isenção do pagamento de custas processuais. (TRF-4 - ACR: 50088376720114047002 PR 5008837-67.2011.404.7002, Relator: ADEL AMERICO DIAS DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/05/2016, SÉTIMA TURMA)" (grifos nossos)
Tal presunção, por sua vez, é relativa (juris tantum), tendo em vista que o boletim de ocorrência traz declarações unilaterais, e estas podem ser afastadas diante de um conjunto probatório apto a indicar o contrário.

O mesmo vale para a área cível. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais assim já decidiu:
  • "INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - AGRESSÃO FÍSICA -RESPONSABILIDADE SUBJETIVA - ÔNUS DA PROVA Para a configuração da responsabilidade indenizatória é necessário que se verifique a presença simultânea de três elementos essenciais, quais sejam: a ocorrência induvidosa do dano; a culpa, o dolo ou má-fé do ofensor; e o nexo causal entre a conduta ofensiva e o prejuízo da vítima. O boletim de ocorrência goza de presunção relativa de veracidade, podendo ser desconstituído por prova em sentido contrário. (TJ-MG - AC: 10687110098161001 MG, Relator: Evangelina Castilho Duarte, Data de Julgamento: 07/02/2014, Câmaras Cíveis / 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/02/2014)"
Ainda que se trate de um documento que contenha declarações unilaterais e passíveis de prova em contrário, sua existência pode desencadear toda uma investigação e, posteriormente, uma ação penal, ambas ditadas pelo seu tom. 

Na maioria das vezes, a pessoa acusada e até mesmo seu advogado ou advogada não possuirão meios de contestar os fatos ali descritos - afinal, é a palavra da Defesa contra a palavra da Polícia - e, ainda que consigam contestar, pode ser tarde demais: a pessoa acusada, por exemplo, pode ficar presa preventivamente durante meses por causa de uma investigação conduzida com base num boletim de ocorrência despreocupado com a verdade.

É considerável, portanto, a responsabilidade com a qual se deve lavrar um boletim de ocorrência, pois este deve ser bem escrito e condizente com a realidade dos fatos.
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Fonte: Stela Silva Valim, disponível em https://stelavalim.jusbrasil.com.br/artigos/474408240/o-boletim-de-ocorrencia-e-a-presuncao-de-veracidade-dos-fatos?utm_campaign=newsletter-daily_20170704_5564&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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Sobre Dr Rárisson Ramon

Rárisson Ramon, de Ipu - CE de nascimento e criação, é acadêmico de direito, faz participações em rádio e é blogueiro.
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