Sempre fui desconfiado com a solidão, entretanto, não a condeno, pois acredito que às vezes até precisamos dela. É um momento onde podemos refletir, colocar as coisas em ordem, fazer planos e, dependendo da situação, executar ações que não as concretizariamos sob olhares e aplausos de nossa plateia de amigos e simpatizantes.
Na educação, uma entre tantas grandezas que a aureola, posso destacar a capacidade de fazer amigos, discipulos e pupilos, que fazem do nosso dia-a-dia, um universo de encontros e reencontros, não nos deixando “estar só”, ou passar “desapercebido” nos cantos e recantos de nosso cotidiano. A educação é lugar de sempre mais um, de trocas e ganhos, sendo estes, não de cunho financeiro, mas de crescimento intelectual e pessoal, acrescido das tramas que se organizam na busca pelo crescimento do outro. E crescemos juntos.
O contraditório nessa situação, é o oficio do Historiador. Seu metier, a pesquisa em sí, já pode ser considerada solitária. Por vezes o pesquisador se acha entre o computador, seus referenciais e suas fontes, buscando nas entrelinhas respostas às suas inquietações, aos seus anseios e às respostas. Não raro, torna-se íntimo de seu objeto de pesquisa, de seus narradores, depoentes ou personagens que vão se destacando, chegando a confidenciá-los suas angústias, confiando na guarda dos segredos e aspirações, esquecendo que, na maioria das vezes, todos já tenham saído deste plano astral. A vida do pesquisador às vezes é engraçada. Entre a solidão e a busca por plateia, vai construindo seu enredo, ou seja, o próprio enredo da vida.
Mas, falando em solidão, lembrei-me de um episódio a tempos ocorrido, em minha época de caserna. Não era segredo a ninguém, que para mim, não existia castigo maior do que ficar atendendo telefones de ocorrências. Preferia estar lá, vendo o que estava acontecendo, no meio do povo, mesmo que fosse deveras mais e muito perigoso. Atender ao telefone, abrir um diálogo com quem não conhecia, e que na maioria das vezes não estava disposto a me conhecer, dar uma de psicólogo, dirimir conflitos, filtrar situações e dar possível grau de perigo a ser repassado aos amigos de frente, para mim era um “serviço pesado”, principalmente por conta da solidão. Era eu, um telefone e alguém que na maioria das vezes ligava no desespero e ansiava por uma resposta imediata, que na maioria das vezes não ocorria.
Assim, um dia fui enviado para uma das divisas do Ceará. Rio Grande do Norte ficou perto e eu tive a oportunidade de respirar outros ares. Dezessete dias longe de tudo, da cidade, dos amigos, da família. Celular não existia em nosso meio. Internet nem pensar. O que salvava eram os hoje produto de colecionadores, cartões telefônicos. E mesmo estes eram caros. Dividiamos entre os amigos os créditos, amigos estes das mais diferentes cidades e regiões do Ceará. Grandes homens que ainda hoje, são grandes amigos. A internet hoje nos aproxima de quem um dia esteve tão distante.
Lá pelo décimo dia, a ansiedade já estava estampada na face de todos. A saudade apertava e a solidão também. Uns estavam noivos, outros recém-casados e aqueles que tinham deixado a namoradinha recente, demonstravam maior preocupação. Será que ela vai me esperar? Não faltavam provocações a estes. A temida traição rondava no imaginário dos mais inseguros.
No início de uma noite de incertezas, lembro de um neo-oficial, que me perguntara como estava minha escala e se a noite eu estaria livre, o que afirmei que sim. Confiando na minha tranquilidade, confiou chamar para irmos a um forró nas proximidades de onde estávamos, com mais dois outros companheiros. Coloquei meu charisma, leite de rosas, uma calça jeans desbotada com um pente de cabo do bolso, um tênis sem meia e uma camisa do Flamengo. O cenário estave perfeito para o forró.
Em um ponto do lado de fora, ficamos nós quatro, tomando cervejas e conversando, além de observar as potiguares. Era um ambiente estranho pra mim. Um forró em sala dse reboco, ao velho estilo Luis Gonzaga. Uma casa de fazenda, com móveis deslocados para um cômodo fechado, os tocadores, triângulo, sanfona e zabumba tocando na sala grande e os dançantes a percorrer todos os cômodos da casa, sendo as mulheres com suas saias rodadas, os homens com calça boca aberta e cigarro no bico, além das suas finas e pontudas facas, que às vezes ficavam à mostra. Era um ambiente peculiar.
Com umas quatro cervejas na cabeça, resolví colocar em prática meus dotes dançantes. A sala estava abarrotada de moças à espera de um cavalheiro a lhes chamar à dança. E eu, de pronto pensei. É agora. Com meu galanteio, me aproximei de uma que, ao esticar de minha mão, já foi balançando a cabeça e dizendo entre os lábios a meia frase: - HUM HUM. Caramba, deveria ter namorado e estava no aguardo. Meio encabulado, dei a volta e vou direto a minha segunda tentativa, recebendo o mesmo: HUM HUM. De novo? Tem nada não. Vamos em frente. A sala esta repleta de moças aguardando um bom rapaz.
Sem muitas delongas, rodei essa casa toda, sempre recebendo a mesma resposta negativa. Associei esse HUM HUM a coisa do mal. Comecei a me preocupar, pois os amigos já aguardavam ver meu desempenho, dada as propagandas enganosas que tinha feito sobre como era conhecido em minha terra Ipu, o famoso Pé de Valsa. De longe, vi uma moça toda torta, cabeça baixa, cabelos arrupiados e olhar triste. Pensei: “minha última tentativa, se não, me preparar para aguentar as brincadeiras dos colegas”.
Direcionando a mão à moça, esta já me abraçou e lançou-me ao salão. Literalmente. Normalmente, o homem conduz a dança, mas no meu caso foi diferente. A moça me jogava pra todo lado... e eu ia... Aquela moça franzina, com olhar triste e corpo desengonçado, se transformara de súbito, como no estereótipo sertanejo de Euclides da Cunha, numa verdadeira fortaleza da dança, pronta para desbancar qualquer outro dançante, movida por um estilo rápido e elegante, que me fez sentir vergonha de ter feito um pré-julgamento. A moça dançava demais, e eu de menos. Confesso que a dança nunca foi meu forte, e estava mesmo era sob a força do Deus Baco. A moça me conduzia e bem.
Não atentei até certo ponto, que o cantor vez por outra mandava um casal sair do centro da sala: “sai a de verde com o cara de azul”, “sai o casal do homem de chapéu”, “eita que o forró está ficando bom”. Foi quando percebí estar participando de um concurso de danças, e que só tinha no salão eu e a moça, mais dois ou três casais. Os amigos, a esta hora, começaram a gritar: “vai Iramar, vai Iramar...”, aí me empolguei. Aí é que eu deixava a moça me levar. E ganhamos!
O prêmio aos vencedores, era uma galinha assada e três cervejas, mas para mim, mais parecia o final da dança dos famosos atuais. Estava ao centro, eu e a moça, parados a olhar um para o outro. Pensei: “vou dar um beijo de cinema”, e assim me preparei. Quando dei a quebra de asa na moça, baixando-a a meio mastro, o improvável aconteceu.... a dentadura dela caiu!!!! O diabo de um menino que não tinha nada a ver com a história ia passando e deu um chute na perereca, que saiu batendo nos quatro cantos da sala, e a pobre moça correndo atrás. E eu fiquei ali, sob os olhares atônitos de minha plateia. Risada só.
Passados alguns instantes, já na velha mesa, onde o garçon tirara as três cervejas de nossa conta, já destroçando a galinha pé-duro fria, aguentando as palhaçadas dos colegas, que aproveitaram a situação para me tirar o sarro, às gargalhadas de minha situação, de súbito e às minhas costas, chega uma criança batendo em meu ombro.
- “Ei moço, ei moço”! E respondo: “Diz menino, o que tú quer”?
- “A Toinha mandou pedir ao menos uma banda da galinha...!!!”.
Foram dezessete dias de solidão, mas ao fim sobrou uma história.
Antonio Iramar Miranda Barros
Ipu/CE, 01/fev/2017
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